UMA ANTIGA TRADIÇÃO:
"Uma colônia de imigrantes no Espírito
Santo mantém vivos os rituais da antiga Pomerânia que não existem mais nem na Europa.
Um sonho de infância de quase toda
menina é entrar numa igreja para se casar de véu, grinalda e vestido branco.
Patrícia Stuhr, uma farmacêutica
de 26 anos, cultivou desde pequena um sonho diferente. Para ela, um casamento tradicional de verdade deveria ter outra cor:
o preto.
Em sua cidade natal, Pancas, no
Espírito Santo, na divisa com Minas Gerais, o casamento mais tradicional é dos pomeranos, uma comunidade que chegou da Europa
e se instalou na região no século XIX.
Na família de Patrícia, as mulheres
se casam de preto desde a Idade Média.
Na antiga Pomerânia, uma faixa
de terras junto ao Mar Báltico, onde hoje está a fronteira entre a Alemanha e a Polônia, essa tradição não existe mais.
Lá não há mais pomeranos nem Pomerânia.
Sucessivas ocupações de seu território
por russos, alemães e poloneses acabaram por expulsar ou dizimar a população.
Os poucos que restaram no local
foram absorvidos pelas cidades alemãs e polonesas.
O dialeto que eles falavam desapareceu
e foi dado como extinto.
A tradição de casar de preto nasceu
como protesto, no tempo em que a noite de núpcias era com o senhor feudal.
Nas montanhas do Espírito Santo,
porém, um pedaço da Pomerânia sobrevive.
Há 120 mil descendentes de pomeranos
concentrados a apenas 50 quilômetros de Vitória em cidades fundadas por antepassados.
Os imigrantes chegaram em duas
levas, em 1858 e 1859 e depois em 1872 e 1873.
Segundo os documentos oficiais,
eram apenas 2.142, mas suspeita-se que o número tenha sido muitas vezes maior.
Eles chegaram sem saber
português e não receberam nenhum auxílio do poder público para facilitar a adaptação. Por isso mantiveram-se fechados em suas comunidades.
Em Pancas, Domingos Martins e outras
cidades da região, a língua que os descendentes aprendem dentro de casa é o pomerano. E, embora muitas moças se casem de branco,
ainda há noivas de preto.
O vestido negro, um objeto de mau
agouro para quase todas as moças no resto do Brasil, é mantido em uso por uma questão de identidade.
As pomeranas começaram a usá-lo
quando seu povo estava sob o domínio do Sacro Império Romano-Germânico.
Quando uma moça se casava, sua
primeira noite não era com o marido, mas com o senhor feudal.
Elas começaram a vestir-se de preto
em sinal de protesto. "A noiva se vestia inteira de preto. Na cabeça usava um chapéu também preto e botava três penas de galinha,
para dar sorte", diz Cecília Zrmke, de 72 anos.
As mulheres amarravam ainda uma
fita verde na cintura, para mostrar que tinham esperança de se livrar da tirania.
O direito do senhor feudal sobre
seus corpos acabou há séculos, mas o que era protesto se transformou em tradição.
O preto foi incorporado ao Pommerhochtied
- o casamento à moda pomerana. O ritual inteiro dura três dias e é um dos pontos mais fortes de união na vida da comunidade.
Não há convite impresso. Um convidador
vai de casa em casa e recita versos pomeranos Patrícia Stuhr já não vive na comunidade pomerana. Ela saiu de Pancas para morar
em Vitória. Mas, na hora de casar, fez questão de voltar à cidade natal e seguir a tradição.
Seu marido, Geraldo, não tem origem
pomerana, mas concordou.
Um mês antes da data marcada, como
manda o ritual, os noivos foram apresentados oficialmente à comunidade durante uma missa.
No evento, conhecido como Afbar,
o casamento foi anunciado. Ali o sonho de Patrícia começou a se realizar.
A cidade passou a girar em torno
do casamento. O primeiro personagem a entrar em cena é o Hochtiedsbirrer, o "convidador" da cidade.
Seu papel é central. A tradição
pomerana não aceita os convites de casamento impressos em gráficas. Até porque a língua não tem grafia e gramática oficiais.
Os parentes e amigos dos noivos
devem ser chamados oralmente para o casamento, e o convite deve ser em forma de versos pomeranos.
Quem faz isso é o convidador, que
os noivos escolhem.
No casamento de Patrícia, a tarefa
coube a Geraldo Raasch.
Antes dele, seu pai e seu avô fizeram
o mesmo. "No começo eu apenas acompanhava meu pai e ficava observando. Depois aprendi e comecei a fazer também", diz Raasch.
Ele começou em 1978, aos 16 anos,
e já atuou em nove casamentos.
Quinze dias antes da festa, sai
a cavalo de casa em casa, portando um cajado, um chapéu e um colete. Vai enfeitado com fitas coloridas e leva uma garrafa
de aguardente.
"Quando o convidador chega, quem
o recebe é a dona da casa.
Aceitando o convite, ela prega
uma fita colorida em suas costas.
Em seguida, o casal toma um gole
da aguardente do convidador", diz.
Uma semana mais tarde, a cidade
começa a se movimentar para ajudar na organização do banquete de casamento.
Cada família convidada
presenteia os noivos com alimentos para serem usados como ingredientes na festa: frangos, arroz, banha, batata-doce, leite,
manteiga, gengibre e utensílios de cozinha. A comida precisa ser farta, variada
e tipicamente pomerana.
Na véspera do casamento, sempre
uma sexta-feira, as mulheres da comunidade põem lenços e toucas na cabeça e se reúnem bem cedo na cozinha da mãe da noiva.
As festas costumavam começar em
quintas-feiras, mas a rotina do trabalho forçou a mudança.
O comando da cozinha fica com a
dona da casa. Cabe a ela liderar a confecção da massa do brote, o pão típico que é o centro da mesa do banquete. Feito à base
de farinha de trigo ou milho, o brote ganhou ingredientes tropicais após a migração dos pomeranos para o calor brasileiro.
A farinha de sua massa pode ser
de cará ou inhame e reforçada com a adição de pedaços de banana. "Festa pomerana sem brote não é pomerana.
Ele ajuda muito a atrair felicidade
aos noivos", diz uma das mulheres nos preparativos do casamento de Patrícia."
Revista Época
Sociedade
Edição 436 - 25/09/2006
CENAS BRASILEIRAS
As noivas
de preto
Priscila Gorzoni